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Entender a Paisagem Protegida da Cultura da Vinha da Ilha do Pico: os poços de maré

Entender a Paisagem Protegida da Cultura da Vinha da Ilha do Pico: os poços de maré

22 de Abril de 2022

Os poços de maré são algumas das referências da Paisagem da Cultura da Vinha da Ilha do Pico – Património da Humanidade, atualmente sob a gestão da Secretaria Regional do Ambiente e Alterações Climáticas, e, no âmbito desta paisagem, figuram como valores culturais.

A sua presença é um dos grandes marcos daquela que foi a gigantesca epopeia da labuta do Homem do Pico, para se estabelecer e sobreviver.

Fora aqueles que já foram destruídos pela erosão costeira, são mais de 30 os poços de maré que prevalecem, dado que, nesta parte da ilha do Pico, eram a maneira mais fácil de acesso à água, face à inexistência de fontes, nascentes, ribeiras ou até tanques e cisternas cuja construção apenas surgiu a partir de final do século XIX. Sublinho que desde a freguesia de Santa Luzia seguindo para oeste até à freguesia de São Mateus não se encontram ribeiras ou nascentes.

A inexistência de cursos de água e nascentes terá sido um forte fator da ocupação humana tardia neste lado oeste da ilha do Pico – antigamente denominado “Fronteira” –, hoje praticamente todo integrado no concelho da Madalena, constituído no século XVIII, dois séculos depois dos concelhos das Lajes e de São Roque do Pico. Para além da falta de água, vastos campos de lava e solo rochoso e a inexistência de terras aráveis propícias à agricultura são as principais diferenças relativamente à parte mais antiga da ilha no lado leste, após o espraiar da grande Montanha do Pico.

É também na Paisagem da Cultura da Vinha da Ilha do Pico que se encontra o poço de maré mais distante da costa na ilha do Pico – o Poço do Aço –, a mais de 700 metros da linha de costa, numa propriedade privada da freguesia da Criação Velha, e que tem uma profundidade de cerca de 16 metros.

A toponímia de algumas ruas e canadas das freguesias ainda preservam a memória e a importância dos poços de maré. A comprová-lo, encontram-se os seguintes nomes de ruas e canadas: “Canada do Poço”, “Canada do Poço Velho”, “Canada do Poço Novo” na freguesia das Bandeiras, o “Caminho do Poço” ou “Rua do Poço” nas freguesias de Madalena, Criação Velha e Candelária e “Pocinho” na Candelária. Todos estes caminhos e canadas davam acesso ou culminavam junto a um poço de maré, perto da costa.

O processo de construção destes poços era totalmente manual, com recurso a utensílios e ferramentas que implicavam o uso da força humana para partir e remover as sucessivas camadas de rocha e pedras, abrindo uma cratera profunda até encontrar água (aquífero basal*). A fase seguinte deste processo, consistia na construção das paredes do poço, desde o fundo até à superfície, em alvenaria de pedra: a cratera entretanto escavada era, gradualmente, entulhada com pedra resultante da escavação, à medida que as paredes do poço iam sendo construídas em direção à cota da superfície. Finalmente à superfície, eram sentadas as grandes lajes de pedra lavrada que vedavam a “boca do poço”, habitualmente com forma quadrada ou retangular, e, em seu redor, o piso era regularizado e lajeado ou empedrado com as pedras ou lajes que melhor se ajeitavam.

No fundo do poço, a profundidade máxima da água pouco ultrapassa 1 metro e oscila com a maré: seguindo a lógica da hidrodinâmica neste contexto, a água de melhor qualidade seria obtida aquando da maré baixa. Ao invés, na maré alta, maior quantidade de água apareceria no fundo do poço, mas maior seria a probabilidade de ser água salobra – de menor qualidade. Em alguns poços, acabam por aparecer eirós ou enguias.

Para retirar água do poço bastava um balde e uma corda. Porém, em alguns poços foram adicionadas estruturas de madeira suspensas sobre a boca do poço, com cordas e roldanas, que facilitavam o processo de subir e descer baldes, desdobrando o seu peso de forma a tornar-se uma tarefa menos esforçada.

Para além de fornecerem água imprescindível à sobrevivência humana e animal, esta água também era usada para fins domésticos, e fundamental para o funcionamento dos alambiques, dada a necessidade de grandes quantidades de água para arrefecimento das serpentinas e lavagem das caldeiras de destilação. Por isso é que, na Paisagem da Cultura da Vinha, em regra geral, nas proximidades de um alambique existe sempre um poço de maré, e casos há também em que são construídas canalizações e calhas rudimentares que transportam a água do poço diretamente ao interior do alambique.

Nas propriedades onde estão implantados os solares, ou casas solarengas, bem como junto a casas conventuais perto da orla costeira, existia sempre um poço de maré, que pela sua importância e simbolismo, ficava enquadrado no espaço da entrada principal da propriedade, numa posição central privilegiada, incutindo naquele cenário da fachada principal um grande protagonismo: como exemplos mais expressivos temos o Solar dos Salgueiros (no Lajido de Santa Luzia) e o Solar dos Arriagas (no Guindaste). Estes são exemplos raros que sinalizavam a importância que as famílias abastadas davam ao seu poço de maré privado.

As canadas e veredas de acesso aos poços de maré públicos mostram evidência de grande movimento de pessoas e carros de bois, notórias pela existência de rilheiras, e de pias de lavar de grandes dimensões construídas em pedra, que demonstram que grandes quantidades de água eram transportadas para as povoações estabelecidas a alguns quilómetros de distância da costa e dos poços de maré (Santana, Santa Luzia, Bandeiras, Toledos, Criação Velha, e Candelária). À data de então, ir buscar água era uma rotina diária.

O retrato da época seria um permanente fervilhar de vida e de gente em redor destes poços de maré: daqueles poços saía a água para saciar a sede, para cozinhar, para tratar de animais, para as lavagens. E era junto ao poço de maré que a maioria das pessoas lavavam as suas roupas e por ali ficavam à espera que essas roupas alvas corassem ao sol, estendidas por cima das rochas negras da costa. 

Nos dias de hoje, os poços de maré são elementos solitários na paisagem, sem vida em seu redor, meio misteriosos: perderam a sua importância e já não são usados. No entanto, preservam o essencial para a sobrevivência humana: a água e a memória.

 (*) Aquífero basal: massa de água doce subterrânea em equilíbrio hidrodinâmico com a água do mar; devido à sua menor densidade, a água doce flutua sobre a água salgada; fenómeno comum junto à orla costeira de pequenas ilhas vulcânicas.

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